abriu os jornais. nada. bom sinal. talvez, se todo mundo não soubesse o que tinha acontecido, ninguém saberia. talvez, ninguém saber significasse que não aconteceu. as últimas horas da noite anterior eram flashes. sutis certezas numa nuvem de desconfianças.
– essa mania de esperar pelo pior é coisa de quem não tem o que fazer. os russos, por exemplo. – disse, com a cabeça enfiada na pia da cozinha.
pia da cozinha é modo dizer, visto que é da natureza de um quarto e sala não ter cozinha. são sempre aquelas bancadas, sempre brancas ou beges, sempre frias e mal iluminadas. a dele não era diferente. mas parecia ter sido feita sob medida: a água gelada batia exatamente na nuca, em um ângulo inteligente, que evitava respingos no chão.
já faz bem uns 40 anos que ele usa tudo o que conhece para tentar matar qualquer vestígio de lucidez que insista em habitar seu corpo. e tudo o que se conhece é muito. não dá pra imaginar a quantidade de substâncias e misturas que um doente crônico é capaz de elaborar. sim, doente. asmático, pneumonítico, taquicárdico. desde criança. desde quando ainda não era o gênio que foi.
na mesa do canto do mezanino do bar, nunca foi o centro das atenções. faltava charme e coragem pra tanto. fora sempre o sujeito meio pálido, meio cheio de manias, dono das frases mais duras e do olhar mais doce. com seus vinte e poucos, ali, no clube, na esquina, não sonhava em ganhar o mundo, ou em roubar um beijo. na sua cabeça, nunca existiu essa poesia.
– cabe muita pequenez em um quilômetro quadrado. quem sou eu pra querer alguma coisa?
fechou os jornais. agora, esperar. se tivesse acontecido mesmo, alguém ligaria. e enquanto espera, usa seu transtorno obsessivo compulsivo – ah, a modernidade, sempre dando novos nomes paras as velhas loucuras – para se torturar. hoje é quinta, dia de medir os ângulos do que não se mexe. e se o caminho é longo, é só porque não se anda na contorno em sentido anti-horário. pelo menos, não num ônibus azul, com o sol na cabeça.
professor de português aposentado, não tem nenhum compromisso entre hoje e a hora de sua morte. só faz, de novo, esperar. mais ou menos como naqueles filmes em que, sentada em cima da mala, a moça arranha a meia calça com a ponta dos dedos, enquanto observa o movimento na praça perto da estação e espera que ele cumpra o combinado. vão fugir juntos. ele não tem porque fugir. ou pelo menos, acha que não, embora tenha quase certeza de que houve dor em algum momento. pensa em quanto tempo já faz que não liga pra sua mãe. e pensa em como isso não faz a menor diferença, já que ela não o reconhece. e ele não se reconhece. a não ser quando ela está por perto, mas reconhecimento dependente não conta.
o telefone toca. era Ella, dizendo que ele podia descer. desceu.