a natureza das coisas

se ele fosse um filme, seria um curta. só por causa de uma montada despretensão que insistia em acompanhá-lo. se fosse uma música, sem dúvida uma melodia doce numa letra ácida. ou o contrário. se fosse coragem, teria feito diferente.

mas ele colecionava medos. todos do mundo.

e os dias são mais longos quando faltam as razões.

dormia ao amanhecer, porque só podia pensar no silêncio da madrugada (se fosse um conto, seria um clichê). seu cachorro, velho e feio e gordo e doente, dormia durante a noite, porque é à noite que se espera que pessoas e cachorros durmam. assim, nunca se encontravam e ele era um estranho até praquela única e miserável vida que já fora sua um dia.

tinha umas cicatrizes que adorava. se fosse meu amigo, talvez eu lhe dissesse que isso não era uma coisa boa. detestava crianças e não se orgulhava disso.

se fosse um lugar, teria os muros pichados. mas não só de rabiscos sem propósito. talvez alguém até escrevesse ali alguma coisa sobre amor. mas ele era só um intranquilo.

da posse do que é meu

eu só posso contar de uma insônia que é minha.  eu não conheço outras e nem elas conhecem a mim. só eu sei das minhas olheiras e da camada de maquiagem, mais espessa e bem feita a cada dia. eu não tenho mais quinze anos e isso também me tira o sono.

do momento em que me deito até o instante em que o despertador toca, muita coisa acontece, sempre. tem dias que durmo. em outros, como hoje, ele não vem nem para uma visita rápida. e por algum motivo que ainda desconheço, já sei disso no exato momento em que fecho os olhos – e eles se recusam a dormir. faltam cinco horas para colocar o meu dedo indicador no leitor de ponto e, até agora, nada. tem sido mais difícil desde o dia em que disseram que o mundo vai acabar.

eu faço tudo exatamente como os especialistas mandam – a irritante rotina dos rituais. não tomo decisões à noite, no máximo um chá quente. e, então, fico aqui, perdida e um pouco aflita, procurando o que fazer, enquanto nada acontece. é quando ela se camufla, camaleoa, em busca de outra cama boa. parou aqui outra vez.

a insônia é um outro jeito de ser solidão.

e solidão assim é pior, porque é só silêncios – que me obrigam a pensar. numa madrugada surda, minha cabeça é só espaço, para pensamentos mudos, pensamentos sujos, um ou dois que já nasceram meio mortos. outros que nunca vão sair daqui. se repetem a cada lua, e se insinuam pra mim como atraente novidade. não me enganam. faz tempo que eu não durmo, mas ainda me resta sanidade. acho. que é mais que desconfio, é menos que certeza. bom é que tenho tempo bastante pra pensar nisso – nada pra fazer agora. falta pouco praquele ponto e ainda bem que vai ter café. nem o elevador funciona mais e é só o vento que continua batendo na janela, daquele jeito estranho, que parece tudo, menos melodia ou melodia ruim, compositor contemporâneo dos piores. gênio incompreendido em vida e em morte. vê? ela é assim pensamento sem freio. sem critério, também. ou sem consideração comigo. quando ameaça amanhecer, ele chega. chega a irritar. é quando não dá mais que ele me quer. um  padrão incômodo que se repete desde quando já não me lembro mais. até quando o assunto é outro. agora não quero, agora não posso. não fica me rondando, não. não me tenta. eu vou embora daqui

sobre crase e hifenização.

prefiro o primeiro.

à luz do meio-dia e de desconhecidos. 

com um guarda-chuva na mão. 

azar meu

quanto mais eu conheço os homens menos eu gosto de gente. e ponto. não suporto cachorro ou bichos em geral. exceto pelas lagostas. e pelas pessoas que as jogam vivas na água fervendo. eu adoro o barulho das lagostas morrendo na água fervente. gosto da minha mãe, também. poderia, facilmente, ser um desses babacas com um coração vermelho tatuado no braço – escrito mãe. poderia, se não fosse a certeza de uma doença. com a sorte que tenho, é fazer uma tatuagem e contrair hepatite. ou algo pior. e eu não vou morrer antes de você. esse prazer não te dou.

aquele dia que você me ligou, só não atendi porque estava ocupado. sexta não é um bom dia, mas você insiste. dois anos atrás seria um bom dia pra você ligar. vai começar um filme agora que é a minha cara: preto e branco e ruim. eu esqueci de comprar pilhas pro controle remoto, então seremos nós dois. cada um com a sua ruindade e falta de cor. lembra de como eu chorei quando comecei a perder a cor? eu não me lembro mais como se chora. e eles? estão com os dias contados. lamentável essa nossa falta de sorte. um dia vira?

tenho um emprego novo. desses de deixar qualquer pai orgulhoso. menos o meu. e o seu. paga bem e tem plano de saúde. odontológico também. meus dentes continuam enormes e o dentista disse que se eu quiser posso lixá-los. tenho mais o que fazer. de todos os tipos de gente, o que menos gosto é o que pensa que tenho tempo. e quem me chama de hipocondríaco. ninguém nunca morreu de hipocondria. e nem de amor. 

me perdoa por tantos pontos finais. me perdoa por tudo mais, também. eu tenho que ir, o filme vai começar. 

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a gente se conheceu numa livraria. eu estava contabilizando quantos exemplares do meu livro ainda estavam disponíveis. e quando eu digo meu livro, é porque eu sinto que ele é um pouco meu, sim. afinal, fui eu que escolhi absolutamente todas as palavras que aparecem ali.

a primeira coisa que ela me disse foi:

– sei que eu não devo falar com estranhos. mas você não parece estranho. exceto pelo fato (sim, ela usou essa expressão) de estar contando livros numa estante, você parece bem normal.

eu ri. não sei bem quais os critérios uma menina de onze anos têm para definir padrões de normalidade. mas mesmo pensando muito, e com notória boa vontade, não vejo como me enquadrar em algum. qualquer um. deve ter sido o tênis. bem normal, não fosse o fato de ser dois números menor do que deveria. mas ela não sabia disso. nem tinha como – depois de tanto tempo, eu já parei de mancar. as bolhas são como cócegas.

ela riu da minha risada. eu ri da dela.

– olha, na verdade, eu sou um pouco estranho sim. mas do tipo inofensivo.

– do tipo que conta livros na estante da livraria?

– é, acho que sim. mas você também é um pouco estranha. com todo respeito, claro. mas quantos anos você tem? não é um pouco nova pra comprar um livro do guimarães rosa? palpito que você vai achar meio difícil.

– eu coleciono primeiras estórias.

acho que todo mundo coleciona, não? eu coleciono segundas estórias, também. porque a vida de tradutor é meio essa, né? alguém escreve um livro. daí, nós escrevemos tudo de novo, com outras palavras. na verdade, com as mesmas palavras, em outra língua. mas uma palavra nunca é a mesma em outra língua. elas têm uma mania de ficar mudando, significando… efêmeras as palavras. eu gosto bem mais dos livros que já traduzi do que dos que tentei escrever. e eu adoraria traduzir guimarães. pro alemão? francês? como se diz nonada em sânscrito? não se dorme.

a mãe dela apareceu. ela foi embora. fiquei triste pelo que poderia ter sido. eu sempre fico triste pelo que poderia ter sido. queria uma nova amiga. de onze anos e um humor incrível. vou comprar umas primeiras estórias pra mim também.

 

outra estória

um conto triste

ninguém morre no final.

ninguém termina sozinho, também. só aqueles que escolheram – e que não eram os escolhidos de ninguém.

ainda assim, é um conto triste.

só porque, às vezes, as coisas são tristes mesmo. mesmo lindas, mesmo doces, às vezes até felizes, elas são tristes.

esse conto triste não começou triste, porém. começou bonito e confiante. como um conto bom. cheio de promessas, era uma aposta certa. se fosse um livro, seria um best-seller (mas ele sabia que era só um conto). cheio de pontos, era reticente a reticências. de ironias sutis pra gente interessante.

um conto bom tem muitos começos. um conto triste, também. esse começou com um abraço.

eu disse que ninguém morria no final. mas todo dia morre alguém. não custa lembrar.

eu disse que ninguém terminava sozinho. mas numa ilha, é sozinho estar sozinho. pronto. o meu conto triste se passa numa ilha. onde nunca tem sol.

eu disse o que não acontecia no final. mas esse conto triste vai ficar inacabado. é muito triste escrever um conto triste. semana que vem, tento uma receita de bolo. de cenoura com chocolate.

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era só ele

andava num mau humor contagiante. é que ser palhaço estava na moda. ele odiava ser palhaço. e tinha pavor de estar na moda. tivesse escutado sua mãe quando ela disse “vai dar merda”. 

tem coisa mais clichê que um palhaço deprimido? patético.

recomponha-se, por gentileza. ou pretende virar alcoólatra, também?

 os amigos – e não imagine aqui um trapezista, um mágico e um domador de leões, eu nunca disse que ele era um palhaço de circo – já se entregaram. ele ainda não. só andava, de um lado para o outro, num mau humor contagiante. mas maquiagem de palhaço é cousa frágil. uma lágrima é o bastante pra acabar com a fantasia. pra ser palhaço tem que saber engolir o choro.

sem ter coisa melhor pra fazer, foi fazer rir alguém qualquer. mas sua vontade mesmo era a de fazer alguém pensar. desajeitado, não sabia onde colocar as mãos enquanto o resto do corpo dançava. andava num mau humor contagiante e tropeçava nos próprios sapatos. e palhaço que não pode andar com sapato de palhaço não tem sentido.  ou tem?

ele era só um palhaço triste. mas tava na capa da bravo. 

 

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combinar estampas e entender do tempo pra nunca errar os caminhos. quem dá conta disso, pode fazer o que quiser da vida.

combinar estampas tem só um verbo e nenhum mistério. é uma questão de observar padronagens, suspirar, compreender a lógica da moda ao longo dos séculos e seguir os preceitos de um complicado livro de estudo das cores que diz exatamente a mesma coisa que o seu espelho: tem coisa que vai, tem coisa que não. na dúvida, vá de listras verticais, que alongam a silhueta – antes errar com elegância.
entender do tempo pra nunca errar os caminhos. já são dois verbos – transitivos indireto e direto, respectivamente – e uma palavra nunca. elevamos o nível do desafio. numa ampulheta de açúcar o tempo corre mais lento. e quisera eu que isso fosse poesia. tempo pra mim, é mistério puro. e essa história de nunca errar os caminhos, utopia. eu, sigo errando um monte. acho até que já andei em círculos, sem me dar conta. mas, pelo menos, a camiseta combina com o casaco.

cartilha

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amor novo

todo mundo precisa de um amor novo. desses que nascem junto com o próprio objeto, sabe?

não sendo mãe, só posso arriscar – e me arrisco – que o nosso primeiro amor novo não pode ser filho da gente. é que tem que ser de graça, também.

é bem clichê, mas é delicioso morrer de amores por uma criança.

até quando ela ainda é um projeto. mais quando ela já é um pedaço.

(mais ainda quando ela é um pedacinho atrevido, esperto, e lindo como você)

até quem andava assim, um pouco com preguiça do mundo, se vê tentando ser um humano melhor, só pras coisas ficarem mais leves.

eu tento todos os dias ser digna de ser a sua dinda.

e me descubro, diferente, a cada vez. é que a gente muda, sabe,  pequeno?

nem sempre pra melhor. afinal, amor novo, é amor também.

e, você ainda vai aprender um dia, amor não é muito racional, não.

(fico aqui torcendo para que você aprenda do jeito mais lindo e doce. que não te façam sofrer. um dia sequer. um minuto qualquer.)

todo mundo precisa de um amor novo. desses que deixam o coração gordo, achando um balão mais importante que a crise mundial.

mas a gente precisa de um amor perto, também.

e a dinamarca, ah, Luiz, a dinamarca é longe demais.

com amor (novo, de saudade, de orgulho),

dindá.

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era ella

abriu os jornais. nada. bom sinal. talvez, se todo mundo não soubesse o que tinha acontecido, ninguém saberia. talvez, ninguém saber significasse que não aconteceu. as últimas horas da noite anterior eram flashes. sutis certezas numa nuvem de desconfianças.

– essa mania de esperar pelo pior é coisa de quem não tem o que fazer. os russos, por exemplo. – disse, com a cabeça enfiada na pia da cozinha.

pia da cozinha é modo dizer, visto que é da natureza de um quarto e sala não ter cozinha. são sempre aquelas bancadas, sempre brancas ou beges, sempre frias e mal iluminadas. a dele não era diferente. mas parecia ter sido feita sob medida: a água gelada batia exatamente na nuca, em um ângulo inteligente, que evitava respingos no chão.

já faz bem uns 40 anos que ele usa tudo o que conhece para tentar matar qualquer vestígio de lucidez que insista em habitar seu corpo. e tudo o que se conhece é muito. não dá pra imaginar a quantidade de substâncias e misturas que um doente crônico é capaz de elaborar. sim, doente. asmático, pneumonítico, taquicárdico. desde criança. desde quando ainda não era o gênio que foi.

na mesa do canto do mezanino do bar, nunca foi o centro das atenções. faltava charme e coragem pra tanto. fora sempre o sujeito meio pálido, meio cheio de manias, dono das frases mais duras e do olhar mais doce. com seus vinte e poucos, ali, no clube, na esquina, não sonhava em ganhar o mundo, ou em roubar um beijo. na sua cabeça, nunca existiu essa poesia.

– cabe muita pequenez em um quilômetro quadrado. quem sou eu pra querer alguma coisa?

fechou os jornais. agora, esperar. se tivesse acontecido mesmo, alguém ligaria. e enquanto espera, usa seu transtorno obsessivo compulsivo – ah, a modernidade, sempre dando novos nomes paras as velhas loucuras – para se torturar. hoje é quinta, dia de medir os ângulos do que não se mexe. e se o caminho é longo, é só porque não se anda na contorno em sentido anti-horário. pelo menos, não num ônibus azul, com o sol na cabeça.

professor de português aposentado, não tem nenhum compromisso entre hoje e a hora de sua morte. só faz, de novo, esperar. mais ou menos como naqueles filmes em que, sentada em cima da mala, a moça arranha a meia calça com a ponta dos dedos, enquanto observa o movimento na praça perto da estação e espera que ele cumpra o combinado. vão fugir juntos. ele não tem porque fugir. ou pelo menos, acha que não, embora tenha quase certeza de que houve dor em algum momento. pensa em quanto tempo já faz que não liga pra sua mãe. e pensa em como isso não faz a menor diferença, já que ela não o reconhece. e ele não se reconhece. a não ser quando ela está por perto, mas reconhecimento dependente não conta.

o telefone toca. era Ella, dizendo que ele podia descer. desceu.

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